Seokjin
No segundo ano do ensino médio, fiquei amigo de uma ômega chamada Han Yejin. Ela até que era legal. Exagerava um pouco no delineador roxo, não parava de falar e dizia "tipo" toda hora, mas fazíamos as mesmas aulas do primeiro semestre, então a amizade meio que veio por inércia. Enfim, Yejin sempre dizia que seu melhor amigo no mundo todo era Gong Yoo, um alfa que conhecera quatro semanas antes de promovê-lo a esse status.
Era,"tipo, aimeudeus, a melhor coisa do mundo ter um alfa com quem conversarsem as complicações que vêm com o envolvimento romântico".
Sei...
É verdade que melhores amigos de verdade não conseguem passar mais de duas horas sem mencionar o nome um do outro, mas Yejin arrumava um jeito de mencionar Yoo a cada duas frases. Não era "só amizade" nada.
Acho que a relação deles foi mesmo platônica por um tempo. Yoo tinha uma namorada e Yejin vivia indo e voltando com o namorado do tempo do fundamental. Mas qualquer um que já tenha visto um filme ou um programa de TV, ou que possua um conhecimento básico das formas de interação humana, sabia exatamente para onde Yejin e Yoo estavam se encaminhando:para a pegação.
Apesar de Yejin jurar que não gostava dele "daquele jeito", os dois já estavam solteiríssimos no feriado de dia dos namorados daquele ano. No recesso de fim de ano, Yejin não estava mais tão ocupada falando "tipo" o tempo todo. Por quê? Porque a língua de Yoo estava dentro da boca dela antes da aula, depois da aula e nos fins de semana. Mas todo mundo sabe como isso acaba, certo? Alguns meses depois, Yejin e Yoo não só não eram mais um casal como nem chegavam perto de ser "melhores amigos".
O rápido romance e o rompimento que se seguiu quase não provocaram fofocas na escola, mas todos aprenderam uma boa lição: Alfas e ômegas não conseguem ser só amigos, pelo menos não melhores amigos. As coisas acabam se complicando.
Agora vamos avançar alguns anos na história...
Aos vinte e cinco anos, tenho um anúncio de utilidade pública a fazer:eu estava errado.
Alfas e ômegas podem sim ser melhores amigos. Dá para ter um relacionamento platônico com um alfa sem qualquer desejo romântico, fantasia sexual e tentativas fúteis de esconder a dor do amor não correspondido com declarações ingênuas como"eu não gosto dele desse jeito". Como é que eu sei disso? Como sei que alfas e ômegas podem ser melhores amigos sem qualquer envolvimento romântico? Porque sou o ômega dessa equação há seis anos.
Seis anos!
História verídica:
Kim Namjoon e eu nos conhecemos nas férias de verão anteriores ao nosso primeiro ano na Universidade, durante a recepção aos calouros. Fomos colocados no mesmo grupo em uma dessas atividades tenebrosas para quebrar o gelo, em que se gruda um papelzinho na testa e tenta adivinhar qual animal somos ou coisa do tipo. Então a coisa... Rolou?
Não sei por que desde o começo foi algo meio "você é legal, mas não vai rolar nada entre nós", mas foi. Talvez porque eu já estivesse de olho em outro alfa do grupo. Ou talvez porque meus sentidos me avisaram que a beleza absurda de Namjoon em algum momento partiria meu coração. De qualquer maneira, fizemos o impossível. Viramos melhores amigos. E, sim, todos os meus amigos e amigas me deram o mesmo aviso que eu dei a Yejin antes: "Isso não vai dar certo".
Os meus amigos não tinham uma visão unânime de como as coisas iam mudar entre nós, mas estavam certos de que ia acontecer. Uma parte deles achava que Namjoon e eu éramos almas gêmeas e só estávamos curtindo um pouco antes de casar e ter filhotes. Outra parte achava que íamos acabar bebendo demais uma noite, dar uma trepada horrível e depois cortar relações de uma vez por todas.
Namjoon e eu provamos que todos estavam errados quando o primeiro ano de faculdade acabou e nossa amizade continuou inabalável. No segundo ano, a história se repetiu. No terceiro, a coisa ficou séria de verdade. Estávamos mais próximos que nunca, passando inclusive a morar no mesmo apartamento. Aconteceu meio que por acaso, quando uma das pessoas que iam dividir com ele desistiu de última hora. Eu me dei conta de que não ia aguentar a comida do alojamento por mais um ano, então fui morar lá. E deu certo. De modo que, no ano seguinte, repetimos a dose.
E aqui estamos nós, dois anos depois da formatura, ainda morando sob o mesmo teto. Só não é mais o apartamento caindo aos pedaços perto do campus, e sim em um imóvel de dois quartos no centro. E sim, tudo continua platônico como antes, sem nenhum sinal de mudança no ar. Sou apaixonadíssimo pelo Hoseok, com quem estou há cinco anos, e Namjoon... Namjoon está em uma impressionante missão de tentar seduzir toda a população ômega e beta de Seul.
— Vocês têm leite?
Ah, lá vamos nós... a bola da vez.
Levanto os olhos e vejo uma loira alta e magra parada na porta da cozinha. Aparentemente, uma beta.
— Leite?— ela repete.
Dou mais uma colherada no cereal, me segurando para não olhar ironicamente para a tigela com leite. Óbvio que temos.
— Na geladeira. — digo com um sorriso simpático. Ela retribui, e covinhas profundas se formam em suas bochechas. Dá para entender por que Namjoon se interessou por ela.
A garota passa pela mesa e vai até a geladeira. Faço uma careta quando vejo a expressão CABEÇA-OCA estampada em sua calça azul-clara.Sério?
A cabeça-oca pelo jeito esqueceu que queria leite, porque pega uma das latas de café gelado da Starbucks que mantenho estocadas para as manhãs de segunda-feira em que preciso de uma energia extra, o que sempre acontece, porque, bom, existe dia pior que segunda?
Sem pedir, ela abre a lata e dá um gole, o que é um pouco irritante, mas nunca fui de desperdiçar energia implicando com coisas bobas, então deixo quieto. Depois obrigarei o Namjoon a repor o meu café.
— Meu nome é Seokjin. — me apresento.
— Taehee. Você namora o cara com quem Namjoon divide este lugar?
Sempre acontece esse tipo de confusão quando me veem no apartamento. Nunca me imaginam como o colega de quarto, mas como o namorado dele. Já estou tão acostumado que não me importo.
— Eu sou o cara com quem Namjoon divide este lugar.— respondo, mantendo o sorriso simpático no rosto. Estou com um pijama bem velho e nem tentei arrumar o meu cabelo esta manhã. Com certeza não pareço uma ameaça.
Mas posso estar enganado. A garota detém o passo, bebendo meu café gelado caríssimo. Sua expressão passa de curiosa a cautelosa. Nem ligo. Namjoon evita mencionar que mora com um ômega quando quer trazer alguém para casa. Ele passou a fazer isso depois de perder alguns possíveis parceiros que, por desgostarem da ideia do sonhado futuro namorado morar com um ômega, não queriam mais flertar com ele. Tolinhos. Tratando-se de Kim Namjoon, eu era a menor das ameaças.
Namjoon aparece na cozinha, com uma calça de moletom parecida com a de Taehee, só que verde-escura e com a estampa do mascote do time da universidade na bunda, em vez de uma expressão idiota. A gente se formou alguns anos atrás, então é um pouco patético, mas não posso dizer nada, porque todas as minhas roupas de academia consistem em camisetas velhas daqueles tempos.
Ele boceja e sorri.
— Bom dia. Taehee, Seokjin. Seokjin, Taehee.
Namjoon não percebe que Taehee olha feio para ele, ou nem liga, porque já conseguiu o que queria com ela. Esse é outro motivo por que não consigo nem pensar em Namjoon desse jeito: ele é bem galinha. Como amigo, não me incomodo tanto, mas como ômega? Jamais. De jeito nenhum. Nem com todos os exames de IST's do mundo.
— Ei, o que aconteceu com a regra de usar camiseta na cozinha?— pergunto, enfiando outra colherada de cereal encharcado de leite na boca.
— Essa regra não existe— ele rebate, com uma piscadinha para a cabeça-oca.
A expressão dela se suaviza um pouco, e preciso me segurar para não avisar a garota que aquilo é uma cilada, as piscadinhas são distribuídas às centenas.
— Existe sim uma regra sobre usar camiseta na cozinha.— insisto — É a número catorze. Por falar nisso, onde estão as regras?
— Não faço ideia — ele diz, abrindo a geladeira quase vazia e examinando-a rapidamente antes de desistir e se servir de uma xícara de café. — Mas posso ter usado para limpar suco de laranja da mesa outro dia.— Ele estala os dedos. — Não, espera aí, lembrei. Eu joguei fora, simples assim.
Aponto para a porta.
— Vai se vestir. Agora.
Ele lança um olhar para Taehee.
— Ele não consegue se controlar quando vê o meu tanquinho. Quase desmaia.
Taehee dá uma risadinha, mas me lança um olhar interrogativo, como se estivesse tentando se certificar de que eu não ia mesmo desmaiar diante do corpo impressionante de Namjoon. O cara parece uma máquina. Só cabula a academia quando a ressaca é brava.
— Quer sair para tomar café? — Taehee pergunta a ele.
Ah, pobre garota. Nem imagina onde se meteu.
Namjoon faz cara de lamento.
— Adoraria, mas prometi que iria até a IKEA com o Jin comprar uma prateleira pra coleção de bonecas dele.
Pego uma colherada enorme de cereal, o que me impede de falar, então me contento em olhar feio para ele. Namjoon está quebrando outra regra da casa:Não usar o nome "Seokjin" para dispensar alguém pela manhã. Acho que inclusive acrescentei uma nota de rodapé à regra:Principalmente mencionando a IKEA. Odeio essa loja.
— O alfa dele não pode fazer isso?— Taehee pergunta.
Ah, péssima jogada. Deixa na cara que está tentando descobrir se sou ou não um concorrente. Namjoon sempre fica mais alerta quando isto acontece, quer dizer que a pessoa tem interesse em algo que ele não está disposto a ter: um relacionamento.
— Ele é um cara delicado.— Namjoon responde, animado. — Tem mãozinhas minúsculas.
Mais uma regra quebrada:Não falar mal de Hoseok para usar Seokjin para dispensar alguém pela manhã.
Hoseok não é delicado. Ele pode não ser fanático por academia como Namjoon, mas não é um molenga, e suas mãos não têm nada de minúsculas. Por outro lado, interferir na conversa só manteria Taehee no apartamento por mais tempo, e eu gostaria que ela fosse logo embora.
Dou a última colherada no cereal e levanto.
— Acho melhor a gente ir — digo, ainda mastigando — A IKEA fica uma loucura aos sábados, e as prateleiras grandes podem acabar.
— Quantas bonecas você tem?— Taehee pergunta, com uma expressão dividida entre desprezo e pena.
— Cinquenta e sete— digo na maior cara de pau. — Na verdade, Nam, se você for demorar, acho que vou dar uma penteada nos cabelos delas. Ontem à noite percebi que o da Polly está um pouco embaraçado.
Namjoon vira todo o café, se afasta do balcão e sacode a cabeça negativamente para mim.
— Coitado... Tão maluquinho...— sussurra e então ele vira para Taehee, põe as mãos em sua cintura fina e a puxa com um sorriso de desculpas. — Que tal deixar o café da manhã para outro dia?
No dicionário de Namjoon,"deixar para outro dia"é sinônimo de"vou apagar seu telefone assim que for embora". Em menos de um minuto, Namjoon está conduzindo Taehee porta afora.
Para minha surpresa, ela nem fica irritada. Vou atrás dos dois, só para provocar, observando enquanto Namjoon cochicha alguma coisa em seu ouvido. Ela arregala os olhos e abre um sorriso de compaixão para mim, como quem diz que vai ficar tudo bem. Então se dirige para o elevador com um aceno.
— O que foi que você disse pra ela?— pergunto, dando um gole no café enquanto observo a partida de Taehee.
— Que você é órfã e que a única coisa que sua mãe deixou foi uma boneca chamada Polly. Daí a obsessão.
Balanço negativamente a cabeça.
— Você sabe que vou reescrever as regras da casa. Com item 'nada de bonecas' a mais.
Taehee dá um último aceno. Namjoon e eu retribuímos, mas não consigo me segurar quando ela vira as costas para entrar no elevador.
— Boa ressaca moral!— grito, com a voz mais doce de que sou capaz.
Ela vira a cabeça de imediato, tentando determinar se me entendeu direito, mas Namjoon põe a mão na minha cabeça e me empurra para dentro, fechando a porta. Namjoon esfrega a barriga num gesto distraído enquanto me olha de cima a baixo.
— É melhor você se trocar. Não dá pra ir à IKEA com esse pijama velho.
— Em primeiro lugar, dá para usar o pijama mais horrível do mundo pra ir à IKEA. É praticamente regra para entrar na loja. Em segundo lugar, a gente não vai lá. Você está tão viciado nas suas mentiras que agora acredita nelas?
— A gente vai sim— ele diz, passando as mãos pelos cabelos castanhos e se dirigindo para o corredor que leva aos quartos.
— Fazer o quê?
— Preciso de uma cômoda nova.
— O que aconteceu com a sua?
— Quebrou.
Franzo o nariz.
— Como você conseguiu quebrar uma cômoda?
Ele me olha por cima do ombro e levanta as sobrancelhas. Demoro alguns instantes para entender.
— A cabeça-oca?— Aponto com o polegar para a porta. — Em cima da cômoda? Mas ela é tão magrinha.
— Ei, ela é alta. Isso me deu um bom ângulo para...
Ponho as mãos nos ouvidos e começo a cantar, como costumo fazer quando Namjoon começa a dar detalhes demais de suas proezas sexuais. Mais uma regra da casa:Seokjin não quer saber o que acontece no quarto do Namjoon.
— Ei, você tem alguma coisa marcada com o Hoseok hoje?— ele pergunta.
— Talvez fosse melhor perguntar isso antes de programar a ida à IKEA. Mas não. Ele vai passar o dia todo estudando.
Hoseok está fazendo mestrado, e, nos próximos dias, ele precisa entregar o texto dele de dissertação. Mal estou conseguindo vê-lo nas últimas semanas.
— Legal. Vamos almoçar juntos.— Namjoon diz e depois volta a se encaminhar pelo corredor sem me olhar.
Almoçar?
Estreito os olhos e vou atrás dele, impedindo que ele feche a porta na minha cara. De fato, a cômoda está inclinada de uma forma nada promissora. Vejo duas, ou melhor, três embalagens de camisinha vazias. Ele pega uma camisa no pequeno closet no canto do quarto e procura a calça jeans em meio à bagunça no chão. Fico à espera.
— Que foi?— ele pergunta.
— Almoço? — Levanto as sobrancelhas e aguardo a explicação. Namjoon não é muito de convidar para almoçar ou jantar com ele. Geralmente, pedimos comida e ficamos no nosso apartamento mesmo.
Namjoon coça o queixo.
— Bom, sabe aquele garoto com quem saí umas semanas atrás? Seojoon?— ele começa. — Ele queria que eu fosse com ele em um almoço de noivado, mas eu disse que já tinha compromisso. Só que ele é louco o suficiente pra passar aqui pra ver se saí mesmo, então acho melhor não ficar em casa...
Levanto uma das mãos.
— Por que você simplesmente não é sincero com ele e diz que foi só uma transa?
— Isso não funciona com o Seojoon, ele é maluco. Fica me mandando mensagem todos os dias, querendo saber quando iremos nos ver e quando ele poderá me apresentar para a família. Aquele cara não bate bem das ideias.
Suspiro, sem paciência. Lembro da regra que fiz para mim mesmo:nunca me meter nos relacionamentos do Namjoon.
— Tudo bem. Vou ser seu álibi. Mas eu escolho o restaurante e você paga a conta. Ah, e vai ter que abaixar a tampa da privada por uma semana.
Ele ergue a mão como se estivesse pedindo permissão para falar.
— Eu gostaria de propor uma regra da casa:Seokjin não pode dizer como Namjoon deve mijar.
— Não é você que faz as regras da casa. E eu não disse nada sobre como fazer xixi, só estou pedindo para que você abaixe a porcaria da tampa da privada. É questão de higiene. — respondo irritado enquanto ele abre uma gaveta com dificuldade e pega uma cueca boxer. — Estou te fazendo um favor, ensinando você a deixar de ser porco. Como você consegue viver dessa forma? Olha esse quarto!— aponto para a bagunça ao meu redor, mas Namjoon finge não me ouvir.— Tenho dó do seu futuro ômega.
Ele passa por mim e sai para o corredor.
— Mais uma regra da casa:Seokjin não pode dizer coisas absurdas como 'futuro ômega' para um solteirão convicto.
— Você não é um solteirão convicto. É só um típico alfa galinha de vinte e quatro anos. E, repetindo, não é você que faz as regras da casa... ei!
Ele fecha a porta do banheiro na minha cara. Percebo tarde demais que deixei passar os sinais clássicos de uma de suas manobras de distração. Ele só queria usar o banheiro antes de mim.
— Vê se não acaba com a água quente!— grito, batendo com a mão espalmada na porta.
A porta se abre apenas o suficiente para que eu veja um olho castanho piscando para mim.
— Você não disse que a Polly estava com o cabelo embaraçado? É melhor dar um jeito nisso.
Ele fecha a porta de novo, e eu bato mais uma vez.
— Não esquece que a toalha verde é minha. A sua é a branca.— Fico à espera de uma confirmação, mas só escuto o silêncio. — Sei que você está ouvindo! Nada de usar a minha "sem querer" só porque a sua está sempre fedida.
Mais silêncio.
Droga. Ele vai usar a minha.
Pois é, meu melhor amigo é um alfa. Mas isso não significa que isso sempre funcione bem.